sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

TUDO COMO DANTES NO QUARTEL DE ABRANTES


A CORRUPÇÃO - QUARTO CAPÍTULO
 
No quarto e último capítulo da série de quatro artigos sobre corrupção abordaremos o caráter brasileiro, sedimentado ao longo das décadas a partir de nefastas políticas conciliatórias, que condenam o país a uma permanente não-mudança. Os atos de corrupção, em tal contexto, surgem, assim, como uma propensão fortemente cultural, como produto das normais sociais do país em que se vive. A história brasileira, sem dúvida, apresenta vários momentos de degradação, servilismo e personalismo na vida política, que têm sido o alimento da corrupção material e política.
 
IV - NACIONALIDADE ESTILHAÇADA
 
Uma simples olhada pelo retrovisor do tempo percebe-se, como bem escreveu Euclides da Cunha, que vivemos o resultado do espólio passado, que nunca foi abjurado. Ao se estabelecer e ao se prolongar no país uma nacionalidade estilhaçada pela exploração, pelo chicote e pela matança instaurava-se um processo social que corrompia todos os indivíduos envolvidos. "Seriam esses os fundamentos de uma cultura política naturalizadora das desigualdades, das exclusões sociais. Foi-se formando uma arquitetura do poder que vai dando espaço para a internalização - em amplos segmentos sociais - de atitudes políticas que emperram qualquer avanço político rumo à democratização da vida social".

O preço tem sido alto ao longo dos últimas décadas em que a democracia brasileira, com os intervalos autoritários que conhecemos, tenta se estabelecer. Vivemos, desde a transição em 1985, um período de avanços contínuos, mas em pouco difere do período do início do século passado, quando as oligarquias coronelistas davam as cartas. Evidente que os oligarcas de hoje estão mais modernos, principalmente no discurso, mas os vícios políticos, como apontava Euclides da Cunha à época em pouco mudaram. Da mesma forma, como narrava o escritor, permanecem "expressos através das ambigüidades no modo de agir, das conciliações estagnadoras,  que não permitiam (e hoje ainda não permitem) aos setores dirigentes o cumprimento dos projetos políticos propostos, das condutas e costumes condenáveis no trato das coisas públicas. Esses mesmos vícios políticos estão presentes nos indivíduos e no sistema representativo e seriam, segundo Euclides da Cunha, potencializadores do contínuo processo de não-mudança que se instalou no Brasil a partir do equilíbrio estabelecido, desde a independência, entre as forças democráticas e as reacionárias.
 
À luz dos escritos do autor de Os sertões podem ser encontradas muitas pistas para compreender a conjuntura atual. Leve em conta que estamos falando de momentos da história passados nos primeiros anos de1890, poucos anos depois do fim do império, ainda que o livro só tenha surgido em 1902. O que percebemos na política ainda hoje guarda invulgar similitude nos métodos. A prática política no governo Lula e agora com Dilma Rousseff, tem-se revelado plena de atitudes e de condutas que reproduzem diversos vícios arraigados historicamente no sistema político. É obvio que a prática conciliadora reiterada continuamente como a única forma possível de alcançar governabilidade através da ampliação das bases de apoio tem levado à impossibilidade de construção de projetos de mudança. Nesse caso, repete-se aquilo que Euclides da Cunha afirma sobre o caráter, após a República, vicioso da prática conciliadora. Se toda a vida política brasileira se constituiu através da conciliação e se esta tem sido um dos alimentos dos emperramentos, não há qualquer razão para que tal prática tenha um outro caráter nesse governo. Assim como não teve no governo anterior.
 
Euclides da Cunha e Manoel Bomfim aportam que desde 1822 foram vários os processos de equilíbrio estabelecidos entre as forças supostamente democráticas e as reacionárias. Se naqueles primeiros tempos as condutas do congraçamento acarretaram prejuízos, no decorrer do momentos seguintes, chegando até aos atuais, tais práticas viciadas foram-se sedimentando no país com efeitos desastrosos para a política brasileira. Entre os vários vícios estavam os de caráter político-administrativo, que anulavam a possibilidade de realização dos interesses nacionais e exaltava a prevalência dos interesses pessoais e/ou grupais.
 
Manoel Bomfim afirmava que a prática da conciliação levava a uma co-responsabilidade dos setores preponderantes na cristalização de uma tradição conservadora, que tendia a neutralizar qualquer mudança voltada para os interesses coletivos. É diferente, agora? Depois da substituição, por suspeita de corrupção, de sete ministros, o que se viu foi a conciliação. O mesmo grupo continuou no poder em nome da governabilidade. Nessas condições, as constantes ações voltadas para as práticas conciliadoras teriam plantado todas as sementes de um modo de operar a vida política em que se torna regra “transigir, dissimular, abjurar, desprezar princípios e sacrificar a pátria por motivos pessoais” (BOMFIM, 1931, p.142).
 
Apesar da horizontalidade imposta pelos avanços surpreendentes da tecnologia, principalmente midiática, quase nada mudou. A tradição conservadora responsável pela perpetuação de tais práticas tem-se revelado vigorosa no país, nas últimas décadas. Sem uma reforma política ampla, sem a luta da sociedade não há saída. Tenho repetido em alguns artigos que a horizontalidade tecnológica, que influi diretamente na horizontalidade social, está produzindo uma nova consciência, que chega de longe e de perto, que difunde inexoravelmente a injustiça das desigualdades, coloca em ebulição as tradições, o desenvolvimento de novos extratos sociais, e produz o "amálgama da resistência”. Amálgama que já produziu resultados explosivos no mundo Árabe e que começa a chegar entre nós.
 
De outra forma não consigo enxergar uma luz, talvez por não acreditar em geração espontânea a partir de sentimentos progressistas. Pode até existirem agentes no grupo de poder que abriguem (e calem) intenções mudancistas. Mas o que acontece verdadeiramente é o envolvimento deles na rede viciada, tecida nas últimas décadas, que inexequível qualquer avanço. Da mesma forma que o boi sabe um fura a cerca, torna-se mais fácil a reprodução de um sistema de poder que tem na conciliação e na adesão danosas o seu fundamento. Dói profundamente quando muitos encaram com naturalidade a aproximação entre forças sociais supostamente díspares. O resultado é uma amarra que impede qualquer ruptura na secular tradição conservadora. Quando a sarna chamada José Sarney, como denomina meu amigo e escritor Ruy Câmara, aderiu à candidatura de Lula só o fez invadido pela convicção de que precisava controlar toda e qualquer mudança política. E está, ele e seu séquito -formados por tantos outros como Renan Calheiros, Jáder Barbalho, Edson Lobão, Michel Temer-, cumprindo, como um presépio que espanta as gralhas, o seu desiderato.
 
E veja como nada (ou quase nada) mudou. Esse modo de agir também vem desde a queda do império, como relata Manoel Bomfim: Desde pós-independência há alguns agentes políticos que sempre estiveram prontos a intervir nos processos políticos para amortecê-los, destemperá-los, reduzi-los “a simples mudança de pessoas” (BOMFIM, 1931, p.125). A conciliação (ou, mais apropriadamente a subserviência) ou a simples adesão formatam a prática que torna possíveis tais ações. Lembra qual era o tamanho do PSB quando o oligarca Cid Gomes conquistou o governo do Ceará? O bombom é distribuído generosamente com os adesistas ou penduricalhos deles, como o fez a Assembleia Legislativa do Ceará, dia 09/02/2012 - quinta-feira), indicando Hélio Parente como conselheiro do TCM. Trata-se do advogado do irmão mais velho do governador, Ciro Gomes (PSB), e ainda deixando o deputado Wellington Landim (PSB) na fila de espera.
 
São tais e abomináveis práticas que alimentam cotidianamente do aviltamento da atividade política. O uso do cachimbo entortou a boca do povo, que tem arraigado em seu imaginário que 'a política é assim mesmo'. E isso satisfaz aos donos do poder, porque, assim, só eles têm condição de "comprar" um novo período de poder, perpetuando a dominação. Não manifestam qualquer remorso, tanto que argumentam candidamente: concilia-se porque não há qualquer outro modo de governar, condenando o país, de forma cruel e injusta, ao "tudo como dantes no quartel de Abrantes" (frase provavelmente pronunciada pelo consul Decimus Junius Brutus, durante a invasão da Península Ibérica).
 
Essa naturalização do oportunismo, que estilhaça o espírito público, têm sido alimentadas há décadas ininterruptamente, implementado o pessimismo e potencializando a indiferença, que impedem o florescimento de qualquer esperança no futuro, como pregava Manoel Bomfim. Mas, não devemos esquecer que a história brasileira tem demonstrado que não tem existido somente degradação, servilismo e personalismo na vida política brasileira.

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