A crise que se abate sobre o mundo é gerada pela crise
bancária. Pode quebrar o país, mas não os bancos. O resultado disse tudo é o
risco que corre a União Européia e a democracia. Claro que a globalização, que
é fundamentalmente financeira, também está em xeque, mas este é um tema que se
arrasta há alguns anos. A mundialização vem corroendo, desde que passou a ser
soberana, ainda que questionada, os nacionalismos, o equilíbrio social,
derrubando planos de desenvolvimento, o emprego e mudando o mapa da industrialização
principalmente em países desenvolvidos. A supervalorização do capital, em
detrimento do trabalho, chegou ao ápice, colocando em risco o equilíbrio do
Estado Social. Um trabalhador do primeiro mundo é desempregado, por exemplo,
pelo trabalhador chinês ou indiano, mas nenhuma negociação pode derrubar tal
realidade. O resultado disso tudo é um afrouxamento (ou degradação, mesmo) das
relações de trabalho e uma superoferta de produtos, enquanto os salários de
base (porque os dos executivos são estratosféricos, no mundo globalizado) não
mantém o poder de compra, o que também não é recomposto pelas medidas
assistenciais compensatórias (tipo Bolsa Família). Vem a estagnação econômica,
a crise.
E como chegamos a esta situação? Robert Castel, diretor de estudos
da École des hautes Études en Sciences Sociales, Paris, e autor do livro, já
traduzido, "As metamorfoses da questão social - Uma crônica do
salário", afirma que em 1960 o assalariado era a matriz base da
"sociedade salarial", concretizando a forma mais avançada de
democracia da história ocidental. Foi através dos suportes sociais garantidos
pela condição de assalariado que o indivíduo moderno tornou-se um indivíduo
positivo, ou seja, cuja existência não é assegurada somente pela capacidade de
vender sua força de trabalho, mas pelo quinhão de propriedade social ao qual
tem acesso. A configuração da sociedade sob a forma salarial, assim como a
afirmação do papel central do Estado Social, foi consolidada, essencialmente,
no período posterior a Segunda Guerra Mundial na Europa Ocidental. Entretanto,
a possibilidade da construção de uma sociedade de indivíduos com direitos
iguais está genealogicamente situada, do ponto de vista econômico, no século
XIV com o surgimento do capitalismo mercantil em cidades como Veneza e,
politicamente, no século XVIII com os ideais da Revolução Francesa.
Essa caracterização histórica, segundo Castel, é necessária
para se entender a ameaça de fratura que assombra as sociedades contemporâneas
e empurra para o primeiro plano as temáticas da precariedade, da
vulnerabilidade, da exclusão, da segregação, do desaterro, da desfiliação[1].
Um simples rebusco na história mostra que desde os primeiros anos da década de
80 as estruturas do capital foram construídas para produzirem a rentabilidade
máxima das aplicações financeiras em detrimento da força de trabalho. A
liberdade de circulação dos capitais tornou possível a concorrência entre os
sistemas sociais e fiscais. É o que os economista designam como
"globalização, ou seja, a reimplantação do capitalismo em escala mundial
para remediar a crise da taxa de lucro que prevaleceu na virada dos anos 60-70;
consagrando a vitória das classes dominantes e o predomínio dos ativos
financeiros sobre os salários; a submissão das estruturas de regulação às
exigências dos mercados. Castel argumenta que, em face disso, não tem sentido
falar hoje em crise se não se cotejar a exata medida de diferenças entre as
antigas situações de vulnerabilidade de massa e a instabilidade de hoje,
trabalhada por processos de desatrelamento em relação aos núcleos de
estabilidade protegida, ainda vigorosos. Como diz Castel, se o passado se
esquiva e o futuro é incerto, temos que compreender o presente.
Jean-Marie Harribey, mestre de conferências de economia da
Universidade Montesquieu-Bordeaux 4 e autor, com Eric Berr, do livro Le
développement en question(s), Bordeaux, Presses universitaires, 2006 segue os
conselhos de Robert Castel e tenta compreender os fatos. Afirma que os
violentos ataques do mundo das finanças levou ao limite o enfraquecimento das
sociedades. Diz ainda que as estruturas da economia tremem, e o véu ideológico
de suas representações é rasgado. E muito mais pode ser dito: a crise na União
Européia ameaçando explodir, os Estados Unidos em esforço intestino ímpar na
história para evitar a recessão, que acena com um efeito dominó pelo mundo, e
já apavora a Ásia. As consequências irrompem, principalmente na Europa, mas
ameaça mudanças profundas pelo mundo afora. As transformações que a política, a
lei, a ideologia, o terror e o mundo árabe convelido não conseguiram a economia
em crise, impulsionada pelo setor bancário impendente está conseguindo. Caiu,
depois de uma década de poder o poderoso primeiro ministro italiano Silvio
Berlusconi; caiu o primeiro ministro da Grécia Geórgios Papandréu; na Espanha,
o poderoso PSOE de José Luis Rodríguez Zapatero foi fragorosamente derrotado
pelo PP de Mariano Rajov, de marcante corte conservador. O México caminha a
passo largos para voltar aos braços do conservador PRI no próximo ano e o
restante da América latina, que só vai acusar o impacto pouco depois, já se
revolve, principalmente o Brasil.
A despeito de ter o PT aboletado no poder há quase 10
anos, o governo brasileiro vive um aberto processo de "direitização"
em nome de uma governabilidade que se sustenta no balcão de negócios, marcado
pela corrupção, obrigando a presidente Dilma Roussef, sucessora de Lula da
Silva, a manter um discurso de "faxina moral" de fachada. Em verdade,
Dilma faz uma administração tolerante e só descarta cadáveres putrefatos. Em 2002,
o cientista político espanhol Ludolfo Paramio, que foi assessor de Zapatero,
escreveu trabalho afirmando que a vitória de Lula da Silva poderia representar
um "guinada á esquerda" na América Latina. Paramio esqueceu de levar
em conta as determinantes do avanço do capitalismo globalizado e a predição
saiu ao contrário. Lula (e agora Dilma) não passou de uma guinada (ou espasmo)
populista corrupta de esquerda, que, em verdade, abre espaço para uma
"guinada à direita".
[1] Robert Castel se recusa em utilizar o conceito de exclusão,
preferindo desfiliação. Ele diz que o uso do termo "exclusão"
é uma "resposta preguiçosa" às dificuldades de problematizar os
diferentes processos que atravessam a sociedade contemporânea e que fazem com
que os indivíduos passem de uma situação de integração para uma situação de
extrema vulnerabilidade. Os indivíduos "excluídos" não estão fora
da sociedade, eles fazem parte da sociedade numa posição de regulação que
permite a manutenção de uma determinada forma de dominação. Podemos também
pensar que o termo "inclusão" tampouco faz sentido se formos
coerentes com este raciocínio, uma vez que não se trata de
"incluir" no sistema que "exclui" mas sim de transformar a
estrutura e a dinâmica sociais, portanto, não se discute a 'inclusão' mas
sim a transformação. Uma das consequências dos processos de desfiliação é a
perda dos suportes sociais que garantem o exercício de direitos iguais em uma sociedade
democrática e o desengajamento material e simbólico dos indivíduos no laço
social. O hiperindividualismo
contemporâneo é um dos efeitos da nova configuração social.
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