No artigo
A CRISE DO CAPITALISMO I, escrevi que a crise que se abate sobre o mundo é
gerada pela crise bancária, fiel à máxima de que "pode quebrar o país, mas
não os bancos". O resultado disse tudo é o risco que corre não só a União
Européia e a democracia, mas o mundo globalizado. E mesmo que o governo do
Brasil continue negando, a crise já se instalou no Brasil, e não é só uma
"marolinha", como costumava tachar o ex-presidente Lula da Silva. O
consumo já se retrai e não vai custar chegar ao desemprego. O primeiro sinal
foi o saldo comercial zero do Brasil (total das exportações menos total das
importações) no último trimestre.
O
cientista político e historiador uruguaio, mas naturalizado argentino, Natalio
Botana, que atua no jornal "La Nación", escreveu que a crise européia
é resultante da fraqueza das lideranças e da incapacidade para trabalhar em
conjunto e resolver o desafio de uma integração econômica em que a unificação
monetária precedeu a unificação fiscal. Aborda também que "é visível o
cansaço dos partidos para se adequar ao novo século e transcender os
nacionalismos do passado, fazedores da guerra, para avançar através de direitos
civis e políticos da democracia e os direitos sociais de outro Estado de
bem-estar. Claro, impulsionado pelo crescimento econômico e pela cidadania fiscal".
O politólogo usa o caso argentino para lançar um alerta: "as tentações
nacionalistas surgem na Europa, assim como o renascimento de uma forma de fazer
política, como na Argentina, que nos remonta há 60 anos. O risco, ou melhor, a
armadilha do anacronismo está vinculada com as políticas adotadas por um
persistente estilo de governo, agora imerso em um ambiente de crescente
escassez de recursos".
A análise
de Botana é pertinente, mas o problema assume maior dimensão à medida em que se
espraia. Claro que a União Européia conforma o olho da crise e deve ser objeto
maior de preocupação. O presidente norte-americano, Barack Obama, entendeu e
quer sufocar a própria crise interna solucionando a européia. O certo é que não
será fácil e tampouco em curto período que se irá superar tantos problemas
que agregam componentes à crise. A presidente Dilma Rousseff já advertiu,
com otimismo, que dois anos não serão suficientes. Na Europa, já se fala em
década perdida. O que é fato é que se depender de talento -que pode até ser
suficiente para barrar, como aponta Botana, o crescimento dessas correntes
retrógradas-, sobram dúvidas quanto à competência para superar a crise do
trabalho em comunidade. Infelizmente, talentos como Jean Monnet, De
Gasperi, Adenauer, Spaak, Brandt, Mitterrand, Kohl e Felipe González, como cita
Natalio Botana, não são encontrados com facilidade. Vale o recurso ao cientista
político italiano Giovanni Sartori[1]: as democracias atuais converteram o governo de direito
em governo dos legisladores, e estamos entrando no terreno pantanoso do governo
da burocracia política e de suas esferas de influência.
A crise
de desconstrução do capitalismo neoliberal gera um temor de derrocada no mundo
e coloca em xeque dois gigantes soberanos: a globalização e o modelo de
democracia regada pelo capitalismo neoliberal. Temas como o protecionismo, da
saída do euro e da desglobalização estão em convergência na mídia. Os
argumentos apresentados mais frequentemente remetem à natureza da crise do
capitalismo, ao marco da regulação necessária e à questão da soberania
democrática. Há um consenso que hoje se impõe inegavelmente: não é mais
possível deixar o mercado como soberano. Não podia ser diferente. Os arranjos
adotados assoberbaram-se e, conforme a maioria dos economistas, apenas vinte
anos foram suficientes para por abaixo o modelo invasivo adotado. Pesquisadores
atentos alegam que desde meados a virada do milênio, a taxa de lucro parou de
subir nos Estados Unidos, e o crédito concedido aos pobres para compensar a
redução do valor da massa salarial não foi suficiente para absorver a
superprodução industrial. O resultado é evidente: o choque é propagado na velocidade
da circulação dos capitais.
Robert
Castel, diretor de estudos da École des hautes Études en Sciences Sociales,
Paris, e autor do livro, já traduzido, “As metamorfoses da questão social – Uma
crônica do salário”, seguiu os passos de defensores do liberalismo
econômico como John Locke[2] e Adam Smith[3], primeiros a descrever e
discutir as implicações da separação entre propriedade e trabalho, reconhecendo
a centralidade do trabalho e do mercado na estrutura e na dinâmica da
sociedade. A passagem do feudalismo para o capitalismo, no mundo ocidental, foi
o marco dessa transformação estrutural fundamental e a Revolução Francesa
deixou um legado de ideias que resultou na criação de uma sociedade de
indivíduos. Mas, como até hoje, apesar da proclamação de direitos políticos
igualitários, as condições sociais para gozo de tais direitos não estavam (e
hoje, nem sempre estão) presentes. É somente durante o século XX, a partir da
regulamentação do contrato de trabalho, que o indivíduo passou a ser protegido
pelos suportes sociais.
A crise
que ora paira sobre o mundo não é resultante da soma de dificuldades nacionais,
sejam gregas, irlandesas, portuguesas ou espanholas. Seria muita coincidência
as mesmas causas em diferentes países. É, como acreditam muitos economistas,
produto de um capitalismo mundializado que alcançou o limite extremo na sua
lógica de buscar o lucro, tratando tudo como mercadoria, desde a produção de
bens e serviços de base, até a saúde, a educação, a cultura, os recursos
naturais e o conjunto dos seres vivos. A globalização não se reduz ao livre-comércio
das mercadorias, isto é, à sua circulação. Ela abrange, segundo Jean-Marie
Harribey (da Universidade Montesquieu-Bordeaux 4 e autor, com Eric
Berr, do livro Le développement en question(s), Bordeaux, Presses
universitaires, 2006), o mundo dos novos produtos financeiros que, capturados
pela lei do máximo valor, sofrem uma dupla e indissociável pressão: de um lado,
revalorizar ao infinito o trabalho que não é pressionável; de outro, fazer essa
espoliação sob uma base material que se degrada e se torna cada vez mais
rarefeita. Desse modo, a fácil comprovar que a crise financeira tem como causas
subjacentes a superprodução capitalista e o impasse de um modelo de
desenvolvimento.
O
economista francês Frédéric Lordon, no artigo "O neoliberalismo, sistema
generalizado de sobre-endividamento" (Le néolibéralisme, régime du
surendettement généralisé), feroz crítico de globalização, adverte que, em um
horizonte de médio prazo, o que se observa é a incapacidade de resolver a crise
com um simples recurso à austeridade, o que abre um vislumbre à catástrofe. A
globalização neoliberal é um sistema de sobre-endividamento geral: dívida das
famílias, dívida das instituições financeiras e dos estados. Lordon afirma que
a dívida total explodiu "monstruosamente em vinte anos de globalização na
maioria dos países: de 220 a 500 pontos do PIB no Reino Unido, entre 1990 e
2010; de 130-370 pontos do PIB na Espanha; de 200 a 350 pontos do PIB na
França; de 200-280 pontos do PIB nos EUA etc. ". E os Estados rotineiramente
mandam a conta da crise para a população pagar, objetivo fundamental e
unificador das classes dominantes. Nenhum governo quer, nem pode correr o
risco, de assumir as consequências de um calote sobre suas dívidas soberanas.
Assim, todos condenam suas economias à recessão. Além disso, a globalização não
é somente comercial e financeira, ela é também produtiva, a ponto de os grandes
grupos multinacionais se preocuparem pouco com as trajetórias econômicas
nacionais.
É
crucial, portanto, a questão dos espaços pertinentes de regulação e de luta
contra a crise. Mas não devemos deixar que essa luta aconteça impregnada pelos
desgastados chavões que costumam tomar conta de tais espaços. É preciso recusar
a ideia de que teria havido um problema de governabilidade mundial e
estimular a busca de instituições internacionais fortes. Devemos, é
claro, levar em conta fracassos de grupos como o G8, do G20 e de outras
articulações de governos dominantes, mas é preciso aprofundar o conhecimento e
os cuidados para enfrentar o desafio verdadeiro: o da construção de uma
regulação mundial. Como enfatiza Jean-Marie Harribey, dois fatos decisivos
mostram a urgência de uma regulação, que não pode esperar que o capitalismo
seja abolido, ou simplesmente marginalizado.
(Em a CRISE DO CAPITALISMO III abordaremos as questões relativas à agricultura e ao clima, que revelam a necessidade de transformar o modelo de desenvolvimento sob a ótica da globalização capitalista, e, principalmente, porque o processo de globalização tem como consequência principal esvaziar a democracia de sua substância)
[2] John Locke, filósofo inglês e ideólogo do liberalismo, considerado o principal representante do empirismo britânico e um dos principais teóricos do contrato social. Ele escreveu o ensaio acercado Entendimento Humano e suas ideias ajudaram a derrubar o absolutismo na Inglaterra. Locke dizia que todos os homens, ao nascer, tinham direitos naturais: direito à vida, à liberdade e à propriedade. Para garantir esses direitos naturais, os homens haviam criado governos. Se esses governos, contudo, não respeitassem a vida, a liberdade e a propriedade, o povo tinha o direito de se revoltar contra eles.
[3] Adam Smith, economista e filósofo escocês, que viveu no chamado século das Luzes (XVIII). É considerado o pai da economia moderna e o mais importante teórico do liberalismo econômico. Autor de "Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações". Acreditava que a iniciativa privada deveria agir livremente, com pouca ou nenhuma intervenção governamental. A competição livre entre os diversos fornecedores levaria não só à queda do preço das mercadorias, mas também a constantes inovações tecnológicas, no afã de baratear o custo de produção e vencer os competidores.
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