sexta-feira, 28 de junho de 2013

PROMESSA DE PLEBISCITO E REFERENDO É DESVIO DE FOCO



Interessante como de repente todo mundo político virou um democrata “a capite ad calcem” (da cabeça aos pés), revelando, em consequência, uma completa perplexidade com a rejeição do povo, manifestada nas ruas, ao modelo representativo. É incrível mesmo que se manifeste pasmo e mais ainda que desconheça as razões do desencanto do povo (menos os favorecidos pelo suborno eleitoral chamado Bolsa Família e, daqui a pouco, somado ao cartão de cultura). Com raras exceções, a reação foi a mesma no Brasil inteiro – todo mundo procurando sintonia com o povo. Vi e ouvi na TV (dia 26/06/13), o presidente do Senado, o honesto democrata Renan Calheiros (PMDB-AL), dizer que não havia nada demais em o Congresso rejeitar a PEC 37 e em aprovar que a corrupção passe a ser enquadrada como crime hediondo porque o “parlamento deve ter sintonia com o povo nas ruas”. Perfeitamente verossímil na boca dele. Há pessoas que mentem e dissimulam tanto que passam a acreditar nas lorotas que criam.

No Ceará também foi assim, embora com a indiferença dos ungidos. O governador cearense, Cid Gomes (PSB), não fez qualquer comentário político sobre os protestos nas ruas de Fortaleza e em outros municípios – indiferente, como se não tivessem existido, preferindo aportar que quer incluir polêmicas locais no possível plebiscito sobre reforma política proposto pelo governo federal. Acrescentou, de cara amarrada, que os temas ainda serão definidos, mas que seria importante saber o que pensam os manifestantes sobre determinadas obras do Estado. “Eles reclamam, nos protestos, que o governo gasta demais com obras faraônicas”. Óbvio que o governador se referia a uma das obras mais criticadas – o aquário, um ousado empreendimento com chamamento turístico e um custo estratosférico de R$ 270 milhões. Outro ponto sobre o qual ainda não há consenso é a construção da ponte estaiada sobre o rio Cocó. Há questionamentos quanto a ser a melhor solução para reduzir o estrangulado tráfego da zona leste de Fortaleza e mais ainda quanto aos impactos ambientais. “Vou aproveitar a data do plebiscito nacional e pedir o apoio da Assembleia para propor plebiscitos e referendos em questões estaduais e vou estimular também que os municípios façam o mesmo em questões municipais”, completou o governador, mal disfarçando o seu desconforto. Só respirou fundo quando se desvencilhou de todos e conseguiu embarcar para a Itália (26/06/13), onde vai, segundo disse, para tratar “de um contrato de financiamento para ações contra a seca”. Na quebrada Itália? Well, well.

É patente que se entende o mal-estar do senhor governador, acostumado ao voluntarismo oligárquico de fazer o que quer, quando quer, como quer e nem sempre para quem mais precisa. Adaptar-se agora àquilo que Gramsci chama de hegemonia popular não é fácil. Contraria muito. Perceber que a sociedade civil quer ampliar o papel do Estado – passando a atuar não apenas como aparelho coercitivo, mas também como aparelho de hegemonia, voltado para a conquista do consenso – é virar a cabeça do clã Gomes. Por isso, ele vai deixar tudo para quando voltar da Itália (em torno de 10 dias) com as novas ideias mais digeridas, ainda que afirme que já entendeu tudo com naturalidade e que até deu sugestões à presidenta Dilma Rousseff, durante a famosa reunião piquenique. “As pessoas estão meio incrédulas em relação ao modelo representativo político atual, por isso sugeri a presidenta que lance mão, ao máximo, dos recursos de democracia direta, que são os plebiscitos e referendos, e é isso que vou propor aqui”. Referia-se o governador ao texto constitucional brasileiro (§ único do artigo 1°.), que adota a democracia representativa conjugada a mecanismos de participação popular, ou seja, a democracia deve ser exercida conjuntamente por representantes livremente eleitos pelo povo e, na medida do possível, diretamente pelos cidadãos. Cinco são os mecanismos de participação popular consagrados no mundo, mas o Brasil só fixou três (artigo 14, incisos I, II e III): plebiscito, referendo e iniciativa popular. Deixou de fora o “recall” e o veto popular. O orçamento participativo foi, até agora, um mecanismo desvirtuado de democracia direta utilizado por algumas administrações. O povo chega a determinar suas prioridades, mas quase nunca são cumpridas.

Sobre os investimentos especial (para tentar calar o povo), o governador cearense afirmou (antes de viajar) que já definiu e que vai apresentar três projetos de VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), no valor total de R$ 2,1 bilhões, ao Pacto Nacional da Mobilidade Urbana, anunciado por Dilma. Sobre os projetos de VLT não tenho subsídios para fazer reparos, mas sobre a alusão aos modelos de democracia representativa e democracia direta as declarações do governador valem alguns comentários. Deve saber o governador que graças a procedimentos do tipo que ele exercita no dia a dia do governo, o regime representativo recebe a cada momento grandes pazadas de terra. Se se aprofundasse um pouco mais na sociologia política(1) ou na ciência política, V. Ex.ª veria que atua muito mais em um regime delegativo(2) do que no representativo, para o qual foi eleito. Vale dizer que a institucionalização da democracia brasileira não tem conseguido vencer a barreira dos procedimentos puramente constitucionais, restrita às formas procedimentais da poliarquia(3), no sentido de promover um avanço em direção dos valores da democracia representativa, com resultados substantivos. A busca pela consolidação do pluralismo democrático tem sempre encontrado barreiras, que o senhor governador cearense bem conhece e aplica, na sociedade política controlada por uma elite tradicionalmente autoritária, herdeira do estamento político que agrega os valores  patrimonialistas típicos da política brasileira do período colonial e imperial.
O governador e a presidenta estão invertendo a pirâmide, para desfocar do real eixo dos protestos, bem naquela história que conhecemos de antigamente “do não é comigo”. O foco do problema, senhor governador, senhora presidenta, não é o modelo de democracia, como prometem apurar através de plebiscito, referendo ou qualquer outro recurso de democracia direta, como alega com desprezo o senhor governador Cid Gomes. O real objeto do problema são aqueles políticos que, como o senhor, a senhora presidenta e eles (Renan Calheiros, Lula, Dirceu, Genoíno, Sarney e mais uma chusma de tiranos travestidos de democratas), veem debochando desse povo e do nosso Brasil há mais tempo que um animal político é capaz de suportar. O senhor mesmo meteu a cara e começou o polêmico aquário e só agora, com o pau das ruas, o senhor quer saber o que pensa a maioria das pessoas. E se a maioria for contra, como o senhor vai restituir o dinheiro do contribuinte gasto? O senhor mesmo não tem sido transparente em diversos atos, incluindo o caso da compra e manutenção dos carros do Ronda do Quarteirão e o caso dos consignados. Em um sistema democrático representativo a prestação de contas horizontal (não propaganda eleitoral personalista) é indispensável, e o melhor remédio contra a corrupção. Quando foi feita uma só prestação de contas ao povo neste país? A presidenta se recusa até a dizer quanto custam suas viagens no jato presidencial. Foram decretados sigilo nos gastos com cartões corporativos, os consignados ainda estão enrustidos e as viagens em jatinhos de empresários para o exterior também nunca foram explicadas. Não serão os plebiscitos ou referendos que irão corrigir tais descaminhos democráticos. É fundamental que não se esqueça que a democracia deve persistir associada à soberania popular, a vontade geral e ao interesse comum. Pode doer aos tiranos, mas é assim que deve ser encarada. A famosa formulação de Abraham Lincoln – governo para o povo, ao invés de governo do povo – teve o intuito deliberado de significar a essência da representatividade.


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(1) Norbeto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino – Dicionário de política Vol. 1, pag. 1.217
(2) Modelo revelado pelo cientista político Guillermo O’Donnel 
(3) Robert A. Dahl diz que as poliarquias (governo de muitos) podem ser pensadas então como regimes relativamente (mas incompletamente) democratizados.

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