terça-feira, 10 de agosto de 2010

A Verdade da Mentira


A mentira é uma coisa tão séria que muitos e renomados estudiosos escreveram sobre ela. Tal assunto não mereceria uma abordagem mais acurada se não fossem os ocupantes do poder central acusados de fazer uso da mentira repetidas vezes. Seria, então, a política o mundo mais fértil para proliferar a mentira? A cientista política Hannah Arendt(1) lembra que as "as mentiras sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente do ofício do político ou do demagogo, mas também do estadista”. O filósofo e professor Jacques Derrida(2) diz que a mentira não é um fato ou um estado, é um ato intencional, um mentir – não existe a mentira, há este dizer ou este querer-dizer que se chama mentir. Para alinhavar uma definição, mentir, para Derrida, seria dirigir a outrem (pois não se mente senão ao outro, não se pode mentir a si mesmo, a não ser a si mesmo enquanto outro) um ou mais de um enunciado, uma série de enunciados (constativos ou performativos) cujo mentiroso sabe, em consciência, em consciência explícita, temática, atual, que eles formam asserções total ou parcialmente falsas. Quando alguém mente, o que conta, em primeiro e último lugar, é a intenção. Era o que sempre afirmava o sábio Santo Agostinho (cita de Jacques Derrida): "não há mentira, apesar do que se diz, sem intenção, desejo ou vontade de enganar" (fallendi cupiditas, voluntas fallendi).

Mentir não é enganar-se nem cometer erro; não se mente dizendo apenas o falso, pelo menos se é de boa fé que se crê na verdade daquilo que se pensa ou daquilo acerca do que se opina no momento. Mentir é querer enganar o outro, às vezes até dizendo a verdade. Pode-se dizer o falso sem mentir, mas pode-se dizer o verdadeiro no intuito de enganar, ou seja, mentindo. Para Santo Agostinho, talvez em busca de imunizar-se, não mente quem acredita (ou crê) naquilo que diz, mesmo que isto seja falso. Immanuel Kant definia a veracidade como um dever formal absoluto. Para ele, a mentira é o mau “a priori” em si mesmo, na sua imanência, sejam quais forem as motivações e consequências. “Se não se banir incondicionalmente a mentira, destrói-se o laço social da humanidade em seu próprio princípio. Nessa pura imanência é que reside a sacralidade ou santidade do mandamento racional de dizer o verdadeiro, de querer dizer o verdadeiro” (cita de JD). O filósofo Alexandre Koyré(3), na mesma linha de Arendt, publicou (Nova York, em 1943) texto, sob o título de “The political function of the modern lie”, em que afirma que “nunca se mentiu tanto quanto em nossos dias. Nunca se mentiu de forma mais descarada, sistemática e constante." Ele prossegue dizendo que nesse campo os regimes totalitários inovaram poderosamente. Em outro trecho de sua publicação, Koyré assinala que, “em suas publicações (mesmo naquelas que se dizem científicas), em seus discursos e, evidentemente, em sua propaganda, os representantes dos regimes totalitários pouco se importam com a verdade objetiva. Transformam a seu bel-prazer o presente e até o passado. Situam-se além da verdade e da mentira”.

A semelhança bate na cara. Uma mentira é verdade até que se prove o contrário. Quando deixou que fosse dito em seu currículo que tinha mestrado e doutorado (área de economia), Dilma teve a intenção de enganar, e a prova em contrário não se fez esperar. Mentira absoluta. Lula disse que não sabia de nada no episódio do Mensalão (mentira?). Dilma negou que sua principal assessora, Erenice Guerra, secretária-executiva da Casa Civil, tivesse ordenado levantamento de despesas realizadas pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sua mulher Ruth e ministros da gestão tucana a partir de 1998(mentiu?). Não devemos confundir mentiras pessoais com mentiras de estado. Claro que a mentira, em uma análise no tempo, perpassa pela história da cristianização, passa pelos pseudos da Grécia e vai até a República de Platão. Os Estados Unidos bombardearam o Iraque arrimados na informação de que aquele país teria um arsenal atômico. Era verdade? O ditador do Iran, Mahmoud Ahmadinejad, é acusado de beneficiar urânio com objetivos belicosos. Ele afirma (mente ou não?) que tem objetivos pacíficos. Em “Mein Kampf”, muitos consideram, Hitler criou uma teoria da mentira. Jacques Chirac, que foi primeiro-ministro da França de 1974 a 1976 e de 1986 a 1988 e foi também presidente de 19995 a 2002, reconheceu solenemente a responsabilidade, ou seja, a culpabilidade do Estado francês durante a ocupação nazista na deportação de dezenas de milhares de judeus, na instauração de um estatuto dos judeus e em numerosas iniciativas que não foram tomadas apenas sob a coação do ocupante nazista, um crime contra a humanidade. O papa Bento XVI pediu desculpas pelo papel da Igreja durante o holocausto. A mentira não sobrevive indefinidamente (será?).


1. Hannah Arendt, Truth and politics, em Between past and future: eight exercises in political thought, New York, The Viking Press, 1968, p. 252-253 e ss.
2. Jacques Derrida, filósofo, é professor da École Pratique des Hautes Etudes en Sciences Sociales da Universidade de Paris e ex-professor da École Normale Supérieure. Tornou-se internacionalmente conhecido pelos livros L'ecriture et la différence e De la grammatologie, ambos traduzidos no Brasil.
3. Alexandre Koyré, La fonction politique du mensonge moderne, em Rue Descartes 8/9, Collège International de Philosophie, Paris, Albin Michel, nov. 1993.

Um comentário:

  1. Muito bom artigo, Erivelto. Concordo, plenamente,com Immanuel Kant, quando diz que a mentira é um mau em si mesmo e a verdade é um dever formal, pois defendo que nenhuma circunstância justifica uma mentira. Entretanto, cumpre-me reconhecer que a prática da verdade tem-se revelado incompatível com o exercício da atividade política. E isso é lamentável.

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